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CONTOS: JADIR FRANCA


Os irmãos Luzia Clara e Álvaro Lúcio

Eles eram brancos, muito brancos, tanto que pareciam transparentes.
Ninguém sabia de onde vieram. Apareceram na escola e começaram a assistir às aulas. Estranhamente não conversavam, não brincavam, não misturavam com ninguém.
Se lhes perguntava os nomes eles não respondiam. Então só ficamos sabendo como se chamavam através da professora: Luzia Clara e Álvaro Lúcio. Mas quem eles eram? Onde estudaram antes? Onde moraram?
Bisbilhotando, perguntando, investigando, ficamos sabendo, pela secretaria da escola que os irmãos branquelos não trouxeram transferência de nenhuma outra instituição de ensino. Foram matriculados no 5º ano por terem 9 e 10 anos e através de um exame diagnósticos que a eles fora aplicado.
No recreio, os dois ficavam sempre juntos sentados distantes de nossas brincadeiras. O menino, até que me olhava com certo interesse em se aproximar, mas uma vez convidado, balançava a cabeça negativamente. Um dos meus colegas, muito intrigado com os dois estranhos colegas de aulas resolveu segui-los no final da aula. Como íamos de ônibus escolar o jeito foi Junino faltou de aula e vir mais tarde de bicicleta. Próximo do termino do horário, chegou à escola e ficou escondido atrás de uma árvore. Quando bateu o sinal de partida, os irmãos, como sempre, saíram na frente de todos, pegaram a velha bicicleta (meio de transporte deles) e saíram rua abaixo. O menino na frente pedalando e a menina na garupa. Neste momento, Juninho saiu de seu esconderijo e os seguiram. Quando perceberam que estavam sendo seguido, o menino mudou a trajetória. Deixou de seguir a via principal da cidade e iniciou a subida de uma rua à esquerda. Era uma rua muito íngreme, ninguém subia ali montado em bicicletas. Juninho fez o mesmo. Quando apeou e começou a empurrar sua magrela, olhou para o ponto mais alto da rua, e os dois estavam terminando a subida, pedalando como se fosse numa decida. Só restou Juninho, desistir e voltar para casa com uma bela desculpa por ter faltado às aulas.
Os Irmãos passaram três dias sem aparecerem na escola. Quando voltaram estavam mais sisudos ainda.
O professor gostava deles. Não falavam, mas acertavam todas as questões dos exercícios e das provas e faziam todas as tarefas.
Após os relatos do Juninho, decidimos formar um grupo de animados curiosos. Mataríamos aulas e nos espalhariam pelas ruas a fim de descobrir onde eles moravam. Assim fizemos.
Era uma sexta-feira. Quando Luzia Clara e seu irmão Álvaro Lúcio, desciam a rua principal na velha bicicleta, colocamos o plano em ação. Juninho os seguiu, Marcelo já estava no alto da rua esquerda e eu um pouco abaixo pedalando em sentido contrário. Não puderam subir a rua, pois lá estava o Marcelo. Voltar não podiam, Juninho estava na retaguarda, então desceram em minha direção. Mas entre nós, eu e eles, havia um terreno abandonado sem muros ou cercas com apenas pequenas trilhas que os moleques faziam brincando de esconde-esconde.
Álvaro parece nem ter pensado, virou rapidamente de direção e entrou com a bicicleta terrenos adentro. Quando aproximei, gritei para que Marcelo e Juninho me acompanhassem.
Entramos no terreno, vasculhamos todos os cantos e nada, não encontramos nada. Ali eles não estavam.
Só conseguimos ver as marcas dos pneus da bicicleta que havia subido o enorme barranco nos fundos do imóvel.
Ficamos vários dias mentindo pra nossas mães, sem coragem de irmos à escola. Como iríamos encarar os irmãos branquelos? Quando voltamos Às aulas, pois não havia como fugir da escola, eles não estavam lá. Perguntamos a professora pelos nossos colegas, ela disse, que um responsável havia comunicado que a família se mudaria da cidade e que os Luzia Clara e Álvaro Lúcio não mais estudavam naquela escola. Combinamos que não contaríamos a ninguém sobre os irmãos e nem sobre o que fizemos, afinal, éramos culpados, pois com certeza eles sentiram
Perseguidos, acuados e excluídos


Jadir frança

Quando eu era criança. Morava numa rua deserta, num bairro deserto de uma cidade deserta.
A rua era toda esburacada e por não possuir iluminação pública e ser muito arborizada era muito, muito escura. As árvores antigas e de enorme porte escureciam a rua mesmo durante o dia. As casas, em sua maioria, eram antigas e muito pobres. Mas uma delas me chamava a atenção.
A dois quarteirões de onde eu morava havia uma casa muito velha e sombria. Nela ninguém, segundo a minha mãe, teria visto pessoas, nem entrando e nem saindo. Parecia que naquela casa não havia morador. Mas, para aguçar minha curiosidade de menino, vi algumas vezes, fumaça saindo da escura chaminé da casa. Cheguei logo a uma conclusão: - mora alguém nesta casa.
A partir deste momento entrei numa empreitada arriscada e perigosa: tinha que descobrir quem era o morador daquela casa.
Passei a rodear e a observar mais de perto a velha moradia. Ficava muito intrigado, pois verdadeiramente, ninguém entrava ninguém sai dali. – se há um morador, como ele vive? O que ele come? Como será? Perguntas me surgiam a todo o momento. Aproximando cada vez mais da velha casa, descobrir algo muito estranho. Um velho lenhador, que com sua carroça vendia lenha pela cidade, uma vez por outra parava diante da casa, sempre no final da tarde, e jogava feixes de lenhas por sobre o muro. O muro era todo emaranhado por cipós de trepadeira. Isso me impulsionou, mais ainda, a tentar descobrir quem seria o morador.
Nas minhas tentativas, acabei descobrindo que atrás do terreno da casa, após o muro, havia apenas uma velha cerca de arame farpado, que já não cercava nada, estava já toda caída pelo chão. Passei pela cerca e andei pelo terreno dos fundos até chegar ao pé de uma árvore que era mais alta que o muro coberto de trepadeira. Com um misto de medo e curiosidade, subi na árvore e me sentei num dos seus galhos e passei a observar a casa. De fato a casa era muito velha, as paredes sujas e o pequeno quintal coberto de ervas e capins. No primeiro dia, nada, não vi nada, mas não desisti. Continuei na minha missão. Até que um dia, pra minha surpresa, vi que a janela que dava de frente para árvore, estava aberta. Logo pude ver, mesmo na escuridão, que era janela da cozinha. Lá dentro havia um fogão a lenha com fogo aceso e um caldeirão preto sobre a trempe dianteira, e nele algo a borbulhar. Não sei quanto tempo fiquei ali, mas sei que fiquei parado até descobri o que eu procurava.
Num certo momento apareceu na cozinha uma velha senhora, muito, muito velha mesmo. Com cabelos que parecia nunca ter sido penteados. Rosto enrugado e arrastando uma das pernas. Aproximou do fogão, pegou um copo, que de tão velho e amassado, nem dava para ver a cor. Mergulhou o copo no caldeirão e o retirou cheio de uma espécie de caldo grosso, escuro e levando à boca, bebeu de um trago só. Retirou-se logo em seguida deixando a cozinha vazia e meus olhos também. Depois deste dia, passei a freqüentar, quase que diariamente, aquela árvore.
Num belo dia, um dia bem claro, subi na árvore e nem percebi que o abelhudo e chato do meu irmão mais novo havia me seguido. Quando percebi sua presença, já estava sentando num outro galho da árvore. Ele também andava curioso com minhas aventuras secretas. Como não podia gritar com ele para que fosse embora, apenas fiz um sinal de silencio. Logo em seguida, a velha senhora apareceu com o seu copo nas mãos. Mergulhou-o no caldeirão e, como nunca havia feito antes, aproximou bem perto da janela olhando o pátio. Colocou o copo na boca e bebeu todo seu caldo. A gula era tanta que deixou escorrer por entre as rugas do rosto a sobra do alimento. Pela proximidade e claridade foi possível ver que aquele caldo era vermelho, cor de sangue. Vendo aquilo, meu irmão soltou um enorme grito horrorizado e despencou árvores abaixo.
Com o grito, a velha senhora olhou para árvore e me viu. Com uma rapidez tremenda fechou a janela.
Fiquei vários dias sem ir até lá, mas quando perdi medo, voltei. Só que nunca mais vi aquela janela aberta. Morei naquela rua até a minha juventude, depois me mudei da cidade. Nunca soube mais nada daquela estranha senhora, mas também, nunca consegui me esquecer dela.

Jadir Franca

... E tinha que ser assim

Foi bem ali, na esquina da Alameda Doutor Horácio Soares com a Rua Faustino Vitório Guerra ao lado do muro da antiga escola, que se deu o encontro. Ele subia, ela descia. Devido à altura do muro, só se perceberam quando se toparam.
Já fazia muito tempo que os dois não viam. Saudades? Certamente sentiam, mas não sabiam que fosse tão grande! Naquele momento ele pensava nas responsabilidades da vida de um homem adulto: o trabalho, as dívidas, os encontros com amigos etc. Ela ansiosa com a vida, certamente pensava nas futuras conquista, nas cobranças dos pais, e também, nas futilidades que permeiam a cabeça de todos os jovens.
De repente, viraram-se a esquina e! (....) se viram frente a frente. Nele o coração disparou. O corpo inteiro tremeu. Faltou-lhe força para suportar o peso do seu corpo de homem adulto. Na busca por segurança, encostou-se no muro e tentou manter o corpo firme e equilibrado. Ela enrubesceu o rosto. Parecia que escorria sangue pela face. As mãos tremiam, e suavam. Foi a primeira vez que sentiu assim. A cabeça girou, e foi com muito esforço que conseguiu manter o equilíbrio. Mas, em ambos a voz, talvez pela ausência de ar nos pulmões, tardou a chegar.
Neste pequeno, mas intenso intervalo entre o susto e compostura, ele pensou:
“Mas não é aquela menina minha ex-aluna, linda e meiga, que me abraçava apertado me deixando sufocado pelo odor do perfume que exalava do corpo de menina na busca da mulher? Que me deixava sem ação, pois sabia que devia reprimí-la, mas o prazer dos carinhos não permitia que o fizesse? Meu Deus! Só agora me dou conta da falta que tudo isso me faz, e da saudade que eu sinto dela”.
Ela, não menos surpreendida, também se embalou nas doces lembranças: “Meu Professor, que homem! Esses braços fortes, esse peito largo, quantas vezes me fez sonhar. E corpo suado, o cheiro de macho. Meu primeiro cheiro de macho. O meu primeiro prazer. Primeiro e intenso prazer, foi ali abraçada a ele, encostadinha em seu peito. E agora? O que fazer? O que falar?”.
(.... A ausência de vozes, explica a não necessidade delas...)
Neste momento, talvez como única alternativa possível, ele lhe abriu os braços e, como antes, de olhos fechados ela aninhou-se em seu peito. Vermelha, suada e tremula. Ele, ainda apoiado no muro sentiu, de forma avassaladora, aquele já conhecido e estimulante perfume. Agora, ainda mais forte e mais incontrolável.
Distantes dos conceitos e tabus, bocas e língua se expressaram como nunca. Sem juras ou injúrias, apenas preenchendo o antes vazio de ambos.

Jadir França